ENTREVISTA COM LUÍS FERNANDES


por Emiliana Carvalho


Há quanto tempo você trabalha com antiguidades? Qual é a história de "O Encanto da Freiria"?
Luís FernandesProfissionalmente há 17 anos, que é a idade deste estabelecimento denominado de “O Encanto da Freiria”. O entrar nesta área, e abrir esta loja, aconteceu por acaso. Em finais de 1994 vendi um outro estabelecimento de hotelaria, em que trabalhei durante 12 anos. Ao adquirir este espaço, que na altura era de pronto-a-vestir, colocou-se-me a questão de abrir, mas com que ramo de negócio? A Baixa, já nessa altura, tinha em excesso oferta de roupas e sapatos. Como gosto muito de arte em geral e decoração, considerando que havia poucas casas neste ramo comercial, apostei tudo em artigos decorativos novos. Como este estabelecimento é relativamente grande, espaçoso, com cerca de 100 metros quadrados, tendo em conta a maioria das lojas do centro histórico que são muito pequenas, e ainda tem uma sobreloja, então, como tinha muita coisa de velharias e antiguidades, neste piso superior coloquei lá algumas coisas pessoais, como rádios, gramofones e outros artigos. Para minha surpresa, reparei, os clientes frequentavam muito mais o primeiro andar do que o rés-do-chão em que tinha investido uns milhares de contos, hoje milhares de euros. Foi assim, progressivamente, que fui passando para as coisas do passado, da memória, e, aos poucos, largando os bens novos.

Quais artigos você comercializa?
Luís FernandesPara além de antiguidade e velharias, procuro ter uma oferta muito variada, desde a grande peça até à mais ínfima. Como, por exemplo, o prego que já não se fabrica até ao vidro para candeeiro que está em desaparecimento. Porque gosto muito e, sobretudo, por uma questão de defesa, no sentido de um maior leque de oferta, tento tocar em várias áreas, como livros usados, artesanato, pratas, brinquedos antigos, usados e novos.

O que as pessoas mais procuram em seu antiquário?
Luís FernandesComo se sabe a Europa, e essencialmente Portugal, está a viver uma grave crise económica que começou em 2002 e sempre em crescendo. Actualmente, por consequência, a oferta suplanta em muito a procura. Como tal, e infelizmente, hoje não há um artigo específico que se venda mais. Quase sempre, e salvo excepções, as compras neste género de casas são feitas por impulso. A pessoa vê um objecto que gosta ou tocou a sua memória e, se o preço lhe convém, adquire-o. Em suma, não posso distinguir nenhum artigo em primeiro plano.
Aproveitando a oportunidade gostaria de lhe dizer que este género de negócio – que é diferente de todos os outros pela singularidade e muito importantes para as cidades-, em face da crise que se vive, está profundamente ameaçado.

Todos os objetos fizeram parte da vida de alguém, da história de uma família. Como você se sente convivendo com o passado?

Luís Fernandes – Sinto-me muito bem. Quase como se fosse um fiel depositário de alguém que, em vida, durante o seu tempo de usufruto, conviveu com aquele objecto - saliento que todos nós somos apenas usufrutuários das coisas tangíveis e não "dominus", com toda a sua carga absolutista, como erradamente se pensa. Ou seja, enquanto estão na nossa posse poderemos dispor deles mas nunca do seu "espírito" intemporal. Por outras palavras, perante a sua grandiosidade, nós humanos, somo meros passageiros. Nós desapareceremos e os bens, cumprindo a sua missão altruísta e cultural, passarão de mão em mão e para quem os souber estimar.

Po outro lado, quer no meu caso, quer para quem trabalha com objectos antigos, há sempre uma grande preocupação em recuperar um qualquer objecto, intrinsecamente se for raro, e fazer a sua perpetuação no tempo. Todos nós sabemos que temos uma responsabilização social na conservação de objectos que foram parte integrante de usos e costumes de uma época e de um povo - e quando digo isto, se é certo que se procura sempre a mais-valia associada ao interesse egoísta, não é menos certo de que, de facto, porque somos pessoas com uma sensibilidade acima da média, temos uma enorme propensão para a conservação cultural e, a todo o custo, evitar que se destruam bens que fizeram parte da memória colectiva ou de alguém, individualmente.

Muitos acreditam que os objetos carregam a energia daqueles que o possuíram. O senhor é uma destas pessoas?
Luís FernandesÉ uma boa questão esta que me coloca. Vou responder a dois níveis, embora acredite que possa cair em contradição.
Por um lado, tocando a filosofia, como disse em cima, acredito que os objectos têm um “espirito” de mensageiros culturais. Na sua génese imaterialista estará logo o amor intenso do seu criador, do seu construtor. Ao longo da existência do bem, quantos mais usufrutuários fizerem parte do seu ciclo de vida e mais afecto lhe tivesse sido dedicado maior será o seu enriquecimento espiritual. É óbvio que não será fácil chegar a este tratamento de afeição, no entanto, pela boa conservação de um objecto antigo, por ilação, chegamos lá.
Em consubstanciação, sendo assim, no meu entender, poderemos inferir que um bem carrega consigo todas as experiências pessoais anteriores, desde o seu nascimento até ao último suspiro de destruição. Porém, contrariamente ao que se supõe, esta carga de pessoalidade é uma mensagem de paz e de benquerença. Qualquer criação humana, na sua origem, quase sempre, tem acoplada a prática do bem –que será o supremo ideal da humanidade. Se mais tarde lhe é dado um uso contrário ao seu fim, não será culpa nem do criador nem do objecto. É certo que este entendimento não é unânime. Ao longo da história do homem, pela superstição, pelo medo do desconhecido, sempre se imaginou poderes sobrenaturais em certos objectos de culto maléfico. Pessoalmente, não acredito na força imanente de qualquer coisa, os chamados amuletos, quer para o bem quer para o mal. Acredito sim que a fé que alguém emprega num determinado bem pode, de facto, transformar a sua vida pessoal.
Em suma, respondendo objectivamente à sua questão, a meu ver, os objectos carregam de facto uma energia implícita, mas positiva. Para além disso, esta carga jamais passará dele, enquanto coisa palpável, e nunca será transmissível ao seu possuidor. A haver ligação será sempre ao contrário, isto é: o possuidor, tanto quanto maior for a união afectiva no inconsciente da memória, fará da coisa uma extensão de si mesmo, muitas vezes sem se aperceber de tal.

Estamos na era da tecnologia, do consumo desenfreado de produtos eletrônicos. Diante disso, qual é o segredo da sobrevida de uma loja de antiguidades?
Luís Fernandes – No meu entender, as lojas de antiguidades e velharias persistirão no tempo, mesmo em uma época em que se valora o "usar e deitar fora" e se desvaloriza a história, a memória do povo e a conservação dos objectos que, comos documentos vivos e palpáveis, são marcos assinalados da própria história. Entendo que continuarão sempre a existir, porque a época que vivemos, se por um lado é importante por ser de extrema abundância, por outro, devido à delapidação de recursos naturais, será efêmera e estará condenada ao fracasso.

Por outro lado, ainda, estas casas, no fundo, são museus interactivos, onde, pela acessibilidade, e contrariamente aos museus inertes que de certo modo têm um frequentador mais erudito e elitista, se pode mexer nas peças e, subsequentemente, serão sempre procuradas por muitos. Mais ainda, este género de estabelecimentos, nas suas dinâmicas naturais, corre atrás da memória e não o contrário. Ou seja, se, como é evidente, a tecnologia substitui de vez a mecânica estas casas acompanharão os mesmo fenómeno de progresso. De tal modo é verdade que as televisões analógicas, os primeiros computadores e os jogos de consola, o cd, só para dar exemplo, já fazem parte do espólio destas catedrais populares.

Luís, é bom viver do passado? 
Luís Fernandes – O homem - literalmente falando -, enquanto sujeito antropológico de humanidade, é um ser de avanços e recuos. Numa primeira fase, chamemos-lhe a da conquista, e que durará, mais ou menos, até aos 50 anos de idade, se necessário for, passará por cima de tudo e todos para atingir o seu objecto de realização pessoal. É como se perante uma montanha desafiadora sentisse necessidade de provar a si mesmo e aos outros de que é capaz de atingir o cume. Acima de tudo o que interessa é apenas a vitória e sem pensar nos custos colaterais. Lutará, destruirá e até matará para o conseguir. Quando atinge o pico, extenuado, sem forças físicas, começa a pôr em dúvida toda a motivação que o moveu até aí. Perguntará muitas vezes a si mesmo: quem sou eu? De onde venho? O que faço aqui?

Talvez porque o seu ponto de observação (mental e experimental) lhe permite olhar para trás, dá por si a fazê-lo intensamente. Em catarse, dá por si a questionar-se se valeu a pena tanto esforço. Num aparente e incompreensível eterno retorno às origens, começa a sentir uma inevitável desejo de retroceder. Quer olhar nos olhos e cumprimentar todos aqueles por quem passou velozmente nessa sua vida que agora considera estapafúrdia e louca. É tomado de um indeclinável arrependimento e, para expurgar, sente um íntimo desejo de, com o seu saber e tudo o que estiver ao seu alcance, contribuir para o bem comum. Se puder criará uma fundação ou, no mínimo, contribuirá e fará parte de uma associação de voluntários para ajudar o próximo.

Depois desta viagem pela filosofia analítica, respondendo objectivamente à sua pergunta, embora seja de dupla interpretação, por um lado, digo-lhe que ninguém vive apenas do passado. Como escrevi em cima, a nossa existência é uma convergência em resultado de várias circunstâncias, uma majoração de experiências, uma tentativa de aperfeiçoamento contínuo que nunca será concluída. O passado será sempre a alavancagem para o futuro - considerando que o presente é um mero estádo virtual. Na nossa vida apenas há passado, olhando para trás, e futuro, visionando para a frente.

Por outro lado, se a questão tinha a ver com o facto de eu viver a vender coisas do passado, digo-lhe que gosto, sim. Mas, curiosamente, sou bipolar: por um sou conservador dos objectos enquanto detentores da memória, por outro, na minha vida, sou liberal, progressista, e pouco agarrado a usos e costumes petrificados. Respeito intrinsecamente a dinâmica natural de tudo o que nos rodeia.

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